A identificação popular, por si só, sem o aval de críticos ou da elite intelectual, nunca foi motivo suficiente para registrar a relevância de alguma obra na história da arte. O popular, na realidade, no decorrer dos tempos, e até hoje, é tido como algo de menos prestígio em relação a obras de arte reconhecidas pela crítica especializada e pelos próprios produtores artísticos.
Se observarmos a história da arte poderemos constatar que muitos artistas só foram reconhecidos muito depois de sua morte – e daí, elitizados. Enquanto viviam, ainda eram motivo de desconfiança por parte dos “consumidores de arte”. Em muitos aspectos e para muitas pessoas, a arte é tida como uma representação de status social. Por essas razões, algo só é entendido como obra de arte a partir do momento em que se detecta um reconhecimento intelectual.
No caso do cinema brasileiro, isso é muito visível. E nem estamos falando de Mazzaropi ainda. De acordo com uma matéria publicada na revista "Cult" com um dossiê de Glauber Rocha, o próprio criador da chamada “Estética da Fome” fez um cinema conceituado por diversos nomes internacionais do cinema – como o diretor Martin Scorsese – dirigiu e escreveu longas que são marcos na história do cinema brasileiro, não teve reconhecimento, no Brasil, enquanto estava atuante e vivia para contribuir com a sétima arte nacional.
Hoje, por analisar o contexto social e histórico da época, a obra de Glauber é lembrada e aplaudida no Brasil e também no exterior. As pessoas compreenderam as alegorias presentes em suas películas e que faziam duras críticas ao modo de viver e de pensar da época. Hoje Glauber tem um reconhecimento que não gozou em plenitude na época em que fazia seus filmes.
Mas Mazzaropi continua à margem.
Cena de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", premiado filme de Glauber Rocha |
A obra de Glauber Rocha, por exemplo, está protegida e amparada na Cinemateca Nacional, um espaço que recebe incentivo fiscal do governo federal e é patrocinada pela Petrobras, uma estatal. O Museu do Mazzaropi é mantido por um Instituto fundado pela iniciativa privada: a empresa que mantém o Hotel Fazenda Mazzaropi, que nada tem a ver com a família do cineasta-comediante, e não há qualquer programa governamental de apoio e preservação ao legado de Mazzaropi. Nem mesmo em Taubaté, cidade onde está instalado o museu, há qualquer tipo de propaganda do governo municipal usando Mazzaropi como motor de propaganda turística.
O sertão do sudeste e centro-oeste, o jeca, o sertanejo da região cafeeira, nunca foram motivo de apreciação artística. A música sertaneja de raiz só chegou à cidade quando se “romantizou”. As modas de viola, que contavam causos e animavam as noites no sítio, até hoje não caem muito ao gosto de quem busca refinamento na música.
O país preferiu falar do sertão nordestino, da seca e dos males das regiões áridas do Brasil. E quem falou de lá, no cinema ou na literatura, foi muito lembrado – e com razão. Na década de 1960, a nouvelle vague brasileira tinha o objetivo de “imprimir o Brasil em película”. E essa procura de uma identidade nacional acabou por se tornar um retrato do sertão nordestino. Neste movimento é que sugiu “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1963), de Glauber Rocha, indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes.
Cena de "Jeca Tatu", a maior bilheteria da história de Mazzaropi, livre adaptação da obra de Monteiro Lobato |
Mas o sertanejo da região de São Paulo e Minas Gerais, do interior do sudeste e do centro-oeste brasileiro, que não convivia com a seca, mas também tinha seus problemas, e precisava enfrentar os grandes latifundiários, a falta de saneamento e saúde pública, via os filhos viajando em debandada para as capitais, ou suas pequenas e pacatas cidades se transformarem em polo industrial, pela proximidade com São Paulo, não foi retratado. Sua roça foi minguando e perdendo espaço para o asfalto e as facilidades da tecnologia e quase nada se falou dele.
Mazzaropi esteve lá para falar desse sertanejo. Ele falou do jeca de Monteiro Lobato, criado em Taubaté e lá instalou sua indústria de cinema. Ele falou dos imigrantes portugueses e japoneses e ele mesmo representava o italiano que saiu da Europa para tentar uma vida melhor no Brasil, mas acabou apenas transferindo para cá novas dificuldades, instalando-se nas lavouras de café para garantir a sobrevivência. Aos poucos, esses sertanejos foram tentar melhor condições de vida na cidade, e Mazzaropi esteve com suas histórias na capital paulista, além de falar do jeca que vinha para a cidade, do que já morava na cidade ou simplesmente levar, no cinema, o jeca para quem um dia morou na roça e se encontrava numa vida limitada às linhas de produção.